Transparente

Lucas Glasner
3 min readApr 3, 2021

Estava passeando com meu cachorro pelo bosque onde meus avós possuem casa. Meu cachorro é um mestiço: A soma da obediência de um Labrador com a fofura de um Golden Retriever. No passeio, duas crianças avistaram Apolo (meu cachorro) e logo avançaram. Perguntaram se ele mordia e eu, sorrindo de canto, afirmei que não — afinal, Apolo não morderia ninguém… Nem se eu pedisse. As crianças fizeram a festa. Pularam perto dele, fizeram carinho e chamaram ele pelo nome diversas vezes, até que elas se foram. Vi, de longe, que uma delas gritou ao pai o que tinha acabado de acontecer. Me peguei pensando: Em que parte deixamos de achar incrível as coisas simples?

Não paramos mais para deslumbrar os momentos, nem para fazer festa com as coisas rotineiras da vida. Parece que o dia a dia de uma criança é a constante descoberta. Uma aventura. Parecem ser movidas à entusiasmo e curiosidade, na mesma proporção. Daí me questiono: Onde perdemos essas características? Não que deixamos de ser entusiastas ou curiosos, mas isso não parece ser mais parte da nossa rotina. Aparentemente trocamos essas características pela ‘preocupação’ e ‘responsabilidade’. Pelo receio do ‘tédio’ e pela clara ‘insegurança’.

Quem somos hoje, afinal? Quais são nossos pontos positivos e quais são os negativos? Será que nossas relações são as mesmas? E o que mudou? O que permaneceu? Faço essas perguntas tendo como base a infância e à chegada na fase adulta. Nesse caminho, o que ficou para trás?

Aparentemente esquecemos de viver… Mas o viver dar crianças, o viver com energia, propósito e descobertas. “Ah, mas qual o propósito de uma criança?” você pode se perguntar. Respondo com certeza: Experienciar. É testar, errar, acertar, experimentar. Fugimos disso constantemente. Queremos receitas prontas de microondas, dicas de moda para não errar no look do final de semana e um match no Tinder para termos certeza que a outra pessoa também nos achou interessante… Toda a incerteza parece ser algo negativo.

Mas o que é a incerteza, se não algo que deveria nos puxar para a investigação? Para testar, errar, acertar, experimentar. Somos acomodados com o tudo ou nada, com o 8 ou 80. Esquecemos dos poréns, do que pode ou não pode acontecer. Esquecemos do acaso e, entregar ao destino, me parece não ser mais recomendado. Nada que não esteja claro é descartável. O tempo enquanto período de descoberta não existe: É um tempo em que as coisas são explicadas ou elas não são dignas de existir — afinal, as coisas só existem se forem ditas/mostradas/escritas¹. Essa constante coerção para a clareza, exemplifica o nosso tempo: O tempo da transparência.

Ser transparente passou de ser uma atitude de responsabilidade afetiva, para ser algo ‘escrachadamente’ aberto do eu. Não mais existe a singularidade, pois a singularidade impede a transparência. O eu não pode existir, senão não existe a comunicação clara. Nós sofremos a coerção de dizer tudo o que sentimos e tudo o que pensamos, pois, se não falarmos, corremos o risco de desaparecermos do radar. A coerção da transparência não favorece uma conexão, ela apenas favorece uma falsa percepção de segurança (pois se sei o que o outro pensa/sente, posso ter atitudes/comportamentos mais assertivos). Essa é a premissa dos relacionamentos atuais.

Quando cito conexão, cito uma relação de confiança. E confiar precisa-se, necessariamente, presumir algo coberto (e não descoberto). A confiança se dá durante a não ciência de algo; ela preenche a falta daquilo que eu não sei. Na sociedade atual, o não saber é inadmissivel. Logo, a confiança pode ser colocada em segundo plano. Fixar um ‘contrato’ de amizade, de namoro, de ficante, do que você quiser chamar, parece estar baseado na transparência. E qual o erro disso? A transparência não favorece a singularidade, os segredos, as particularidades, as fantasias e a confiança. E, ora ora, tudo isso faz parte da nossa constituição e de nossas relações. O encoberto e o descoberto. A gente trocou a aventura do descobrir (que contém riscos), pela mesmice do saber (sem riscos e sem aventura). E eros é justamente o velado, o coberto. Não existe eros no desvelado, no descoberto, na transparência². Logo, o erótico (não confundir com perversão) se perde num jogo atual de “o que ele(a) tem que me interessa?”. E o discurso do “o que ele tem” implica, consequentemente, na clareza do saber; da transparência do outro.

A relação das crianças é baseada no descobrir. A dos adultos é baseada no saber. E quanto mais eu sei, menos eros há. Quanto mais eu me torno transparente, menos singularidade possuo.

¹BYUNG-CHUL, Han. Sociedade da Transparência. Editora Vozes, 2017. ²_________________. La agonía del Eros. Herder Editorial, 2014.

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Lucas Glasner

Ensaios sobre a rotina, redes sociais e psicologia.